quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Memórias de um Anjo


Fui enviado à Terra no dia dezessete de dezembro de 1905, mais precisamente para Cruz Alta, Rio Grande do Sul, Brasil. No mundo ecoavam a Guerra Russo-Japonesa e o Massacre de São Petersburgo. Missão: ser o guardião de um menino que acabara de nascer e que seria um grande escritor.

Em 1912, esse menino entrou para o colégio Elementar Venâncio Aires. Um tempo depois, em 1914, a conjuntura mundial entrou em crise. Todos aqui em cima ficaram tristes quando a Primeira Grande Guerra começou. Para amenizar a situação, tentei fazer com que o menino se voltasse para as artes e o incentivei a conhecer o cinema francês. Eu também gostava de ficar com ele no quintal de sua casa, muitas vezes lendo Júlio Verne e Eça de Queirós.

No ano de 1918, tive de dar uma mãozinha aos meus colegas quando ocorreu a gripe espanhola. Muitas pessoas vieram ficar conosco, porém o chefe decidiu que a família do guri tinha muitas tarefas a cumprir, e, por isso, foi poupada.

Fui visitar a Semana da Arte Moderna, em Vinte e Dois. Simplesmente maravilhosa. Descuidei-me um pouco do mocinho e não vi quando Dona Bega, sua mãe, se separou de Sebastião, seu pai. Voltei voando para ampará-lo, mas senti que a família já não era mais a mesma para ele. Sua tristeza me doía. Não é à toa que, em praticamente toda a sua obra, a imagem da família aparece como uma busca do que deixou de existir...

No ano seguinte, a Revolução Constitucionalista se expandiu pelo Rio Grande. Estava cada vez mais difícil dar conselhos aos revolucionários e ao Governo. Quando os gaúchos iniciaram a marcha até o Obelisco do Rio de Janeiro, pedi ao meu colega Ariel para que acompanhasse o seu Sebastião, que se integrou aos revoltosos.

Lá por 1928, o rapaz escritor já havia escrito alguns contos. Entre eles estava Ladrão de Gado, publicado na Revista do Globo. Dois anos mais tarde, ao semudar para Porto Alegre, passou a trabalhar nessa revista, e, em pouco tempo, já trabalhava na Livraria do Globo, onde colaborou por muitos anos. Já era 1931, e o meu protegido tornou-se um homem. Seus olhares voltaram-se para Mafalda Halfen Volpe, o grande amor de sua vida. Confesso que pedi ao cupido que ajudasse nessa bela união - e deu certo.

Sinceramente esse mortal foi a melhor pessoa de quem já cuidei. Eu ficava admirado quando ele começava a escrever e não parava mais. Para mim, a literatura brasileira não seria a mesma sem esse homem que dedicou vida e obra à defesa da liberdade e ao repúdio à violência.

Ele estreou de fato no cenário literário com um livro de contos chamado de Fantoches e, logo após, publicou Clarissa. Já em 1935, editou A vida de Joana D'arc e Música ao Longe (o qual mereceu o prêmio Machado de Assis). Eu e todos os Serafins adoramos quando ele assinou um manifesto contra a invasão da Abssínia pelas tropas de Mussolini. Também fiquei ao lado dele quando se opôs à Guerra Civil Espanhola e aos ataques de Franco.

Foi com Olhai os Lírios do Campo que a sua vida melhorou bastante, tanto que conseguiu alugar um apartamento no prédio do Clube do Comércio, na Rua da Praia em Porto Alegre. Gostei do lugar... Eu ficava ali, no parapeito da janela, observando o movimento da Praça da Alfândega.

Em 1949, lembro-me da publicação do primeiro volume de O tempo e o Vento, O continente. Depois viriam outros volumes, como O Retrato I e II e O Arquipélago I, II e III - uma obra grandiosa, senão a mais preciosa trilogia de todos os tempos. Isso me pareceu na época, uma obra de grande repercussão, avançada... como a saga de Guerra nas Estrelas, entende?

A partir de 1943 começou a levar a cultura brasileira para outros países - México, Estados Unidos, Alemanha, Portugal - adorei conhecer todos esses lugares mais de perto, inclusive Israel e Grécia.

Foi então que, entre 1958 e 1961, o coração de meu protegido começou a ter problemas. Meu chefe disse que o deixaria ficar mais um tempo aqui na Terra, mas que depois ele precisaria vir morar conosco. Por isso, insisti com Mafalda e ses filhos, Clarissa e Luis Fernando, para que ele caminhasse diariamente pelas ruas de Petrópolis - último bairro em que morou...Lembro-me do cheiro de jasmim nsa ruas...

Em 1971, acompanhei esse homem, que para mim se tornara um amigo, em uma viagem para Cruz Alta. O vi emocionar-se escondido, relembrando o passado...Dois anos mais tarde, lançou o primeiro volume de Solo de Clarineta. Futuramente chegariam até os leitores outros títulos consagrados, como Senhor Embaixador, O prisioneiro, Incidente em Antares, entre outros.

Foi então que na tarde de 28 de novembro de 1975, época em que ainda escrevia o segundo volume de Solo de Clarineta e pensava em escrever A Hora do Sétimo Anjo, nós nos conhecemos pessoalmente - Muito prazer, meu nome é Hiazel. - O prazer é meu, Erico Verissimo. Convideio para dar um passeio e ele aceitou. Até hoje eu o encontro aqui em cima, então quando começo a falar dos bons tempos e a elogiá-lo, ele sorri e me diz baixinho: " - Sou apenas um contador de histórias, meu amigo”.



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